Leonardo: ‘O futebol brasileiro está fechado para o mundo’

Compartilhe
Leonardo, quando diretor de futebol do PSG, em Doha (Foto: John Berry/Getty Images)
Leonardo, quando diretor de futebol do PSG, em Doha (Foto: John Berry/Getty Images)

Poucos são os que se lembram de Leonardo Nascimento Araújo por sua habilidade como lateral esquerdo e meia de São Paulo, Flamengo, Milan, Paris Saint-Germain e Seleção Brasileira tetracampeã em 1994. Radicado na Itália, Leonardo é o brasileiro que foi técnico de Milan e Inter de Milão e diretor esportivo do PSG, time que ressurgiu desde que os bilhões árabes formaram uma equipe com o sueco Ibrahimovic e os brasileiros Thiago Silva, David Luiz e Lucas. A experiência como técnico e cartola dá a Leonardo a segurança para cravar que o futebol brasileiro ficou para trás. “A gente achava que era só colocar a camisa amarela, disputar a Copa e – uau! – marketing natural. Isso acabou”, diz nesta entrevista a ÉPOCA. Afastado do futebol em 2013 por 14 meses após empurrar um juiz, Leonardo anulou a punição na Justiça e pretende voltar a trabalhar como manager – mistura de técnico e dirigente – em 2016.

ÉPOCA – O técnico brasileiro está atrasado? Na Europa falam no fim do esquema, em jogar sem zagueiro de origem. Aqui ainda falamos em volante cão de guarda para fechar a zaga.
Leonardo – Ele não está dentro do circuito internacional. Se não tem acesso a outras informações, dificilmente consegue desenvolver uma nova ideia. Ele está fechado para o mundo. Não adianta só ir uma semana à Europa para ver os treinamentos.

ÉPOCA –Estar distante dos polos de conhecimento, sobretudo da Inglaterra e da Alemanha, deixa-os desatualizados, incompletos?
Leonardo – Claro. A formação do treinador brasileiro é empírica. Não tem formação de base. O treinador na Europa faz dois, três, quatro anos de curso para ser treinador. Para ser treinador na Europa eu fiz dois anos do curso da Uefa (entidade que rege o futebol europeu), na Itália. Depois desenvolve as ideias dele, mas está sedimentado em uma base teórica. A Uefa regulamentou. Hoje existem cursos no Brasil que não são reconhecidos por ninguém. Não valem na Europa, não valem internacionalmente.

ÉPOCA – Você vê no Brasil algum bom exemplo? O Tite no Corinthians? Ele aparenta ter um trabalho estruturado, com estilos de jogo comuns na Europa como construção de jogo com mais passes e menos chutões ou “lançamentos”.
Leonardo – Temos grandes treinadores para a realidade do Brasil. Os melhores dos últimos tempos foram motivadores. Essa coisa de juntar um grupo, fechar, facilitar que algumas individualidades fossem muito bem. Isso aconteceu muito. Não é que Vanderlei Luxemburgo, Tite e Muricy Ramalho tenham ganhado por acaso. Só que eles ganharam aqui. Eles se adaptaram a uma realidade brasileira. Isso foi ótimo. Mas falta um treinador atualizado para o panorama geral.

ÉPOCA – Como o treinador brasileiro é visto na Europa?
Leonardo – Historicamente, o treinador brasileiro nunca teve grande mérito. Nas nossas conquistas, até pela própria seleção, o mundo não o reverenciou. Talvez o único seja o Telê Santana (técnico da Seleção Brasileira nas Copas de 1982 e 1986). Mas que também não trabalhou no exterior. O treinador brasileiro foi um pouco estigmatizado por não ter uma incidência real no time. O europeu dá uma identidade clara a ele. O brasileiro, menos.

ÉPOCA – A fama da Seleção Brasileira não é mais suficiente?
Leonardo – Durante muitos anos a gente produziu jogadores de forma empírica. Jogadores terminavam a formação deles na Europa. Todos que brilharam terminaram a formação lá. Ronaldo virou Ronaldo na Europa. Ronaldinho virou Ronaldinho na Europa. Kaká virou Kaká na Europa. Mas isso não tem vida longa.

ÉPOCA – Os clubes não conseguem formar atletas?
Leonardo – As instituições, devagar, foram perdendo credibilidade, poder, receita. O futebol brasileiro virou um produto menos atrativo, produto que só se vende no Brasil. A gente vê na televisão, se satisfaz com o dinheirinho que entra e acabou ali. Tudo o que falarmos da parte técnica é consequência da política. Não existe política de formação de treinador, de dirigente de clube. Quem é (o dirigente)? É o cara apaixonado que se candidata, está ali há anos porque é apaixonado, é sócio. Mas que formação ele tem? O que o empresário que vende chocolates tem a ver? Com o tempo tudo isso diminuiu muito a capacidade de produção do futebol.

ÉPOCA – O futebol brasileiro guardou dados sobre os nossos atletas?
Leonardo – A gente não mapeou nada. Produzimos Pelé, Zico, Ronaldo, e cadê nosso know-how? Não existe. Ninguém tem. Nenhum clube passou de um para outro, não existe sequência.

ÉPOCA – O que o europeu tem de estatística, de banco de dados, que o brasileiro não tem?
Leonardo – Um jogador se divide em quatro áreas que depois são subdivididas: a parte técnica (individual), a tática (coletiva), a médica e a psicológica. São as áreas cardinais para fazer avaliação do jogador. Principalmente falando de formação, o menino tem que ser acompanhado em tudo. Quero ver se hoje o treinador e o diretor de um clube sabem tudo o que esse jogador faz, a vida dele. Porque a vida dele tem que ser focada. Tem que viver pra isso. Quero ver se ele sabe quem é a família, qual é a escola, o que ele come, onde está quando não está no treinamento,  que tipo de coisa tem que dar para o menino render o máximo, que tipo de perfil psicológico ele tem para facilitar a imersão dele em um time, em uma cidade. Quem conhece esse menino em um momento de risco de contusão? Não é que isso não exista no Brasil. Mas não há um know-how que vire metodologia. A nossa metodologia é ter um treinador que fica um ano, dois, vai embora com tudo debaixo do braço, chega outro, faz outra coisa, e vai andando.

ÉPOCA – Algo se perdeu com o tempo neste aspecto?
Leonardo – Nós tivemos uma coisa muito legal, que ninguém dava, e a gente dava, que era liberdade de criação grande. Essa era nossa prática. Deixe ele jogar, deixe ele viver. A escola europeia já era contrária. Só que ela desenvolveu metodologias de formação do coletivo e melhorou a individualidade, e a gente ficou na individualidade, sem melhorar o coletivo, sem controlar o processo de formação. Com o tempo a organização de um jogo bate a jogada individual.

ÉPOCA – Romário tinha um treinador no PSV que o ajudava fora de campo para adaptá-lo à cidade…
Leonardo – Guus Hiddink. Foi meu treinador também. E tem que ser. O clube tem que ter o entendimento do que precisa para ele render mais. Aqui a gente fica com tentativas e erros. A gente tenta, vê no que dá, tenta de novo, e aí fica realmente complicado.

ÉPOCA – O que Conmebol e CBF precisam fazer?
Leonardo – Dirigentes no Brasil discutem votos nos clubes, nas federações, na Fifa, encontros em assembleias da Fifa, apenas questões políticas. Quem discute formação, homologa cursos? Quem leva informações daqui para fora, quem traz de fora para dentro? Não existe integração. O futebol brasileiro está fechado. Temos um produto nacional. É um erro de conceito. O Brasil está fora do circuito mundial.

ÉPOCA – Na Europa há clubes com donos, ingleses e franceses, há clubes com empresas como sócias, alemães, e há clubes com conselhos, italianos. Qual modelo é melhor?
Leonardo – Não acho que há melhor ou pior, não. Se você pega Barcelona e Real Madrid, eles têm uma política tão complicada quanto (a dos clubes) do Brasil. Só que eles têm uma coisa que faz diferença, o poder econômico. No Brasil temos problemas de política e não criamos novas receitas. Os clubes não têm dinheiro. De onde vem o dinheiro de clubes europeus? Do campeonato nacional e da Liga dos Campeões. Qual a competição internacional que os clubes brasileiros participam?

ÉPOCA – Libertadores.
Leonardo – Quanto ela produz para um time que ganha? € 5 milhões, mais ou menos. Sabe quanto ganha um time que ganha a Liga dos Campeões? € 65 milhões mais prêmios de contratos publicitários. O Brasil participa de uma competição em que paga para participar. E quem busca a Liga dos Campeões das Américas? No Brasil a gente fica comendo na mão dessas instituições que organizam uma Libertadores que não é rentável. O que ela te dá? Nada. A visão que temos do futebol é extremamente política. As decisões quase sempre são tomadas para se manter no poder. As decisões não são tomadas em prol de um produto melhor. Falta visão e diálogo.

ÉPOCA – A hierarquia do futebol brasileiro, com federações e clubes, ainda funciona?
Leonardo – Todo mundo é vítima de um sistema arcaico. Acabou. Já funcionou, deu certo, foi inventado assim, mas hoje o mercado pede outra coisa. O campeonato interno está baixando o nível, as pessoas têm menos interesse, vão menos ao estádio, e aí formamos piores jogadores, piores treinadores. É uma sangria desatada. Os clubes poderiam se organizar para fazer isso melhor, e eles poderiam ser estimulados, promovidos, divulgados por instituições. Que seja uma liga, que seja a CBF, seja quem for, 24 horas por dia, para desenvolver um produto não só com uma visão nacional, porque nacionalmente a gente não vai conseguir ser competitivo em alto nível.

ÉPOCA – Então a CBF tem problemas políticos, as federações, também, e os clubes, também. Ninguém é vilão, nem mocinho. De onde sai a mudança? Tem que ser externa?
Leonardo – Ou você precisa de força política, ou econômica. Se hoje alguém chegar para os clubes e dizer: quanto você ganha? Dez? Vou te trazer vinte. Vem comigo? A ideia tem que ser financiada.

ÉPOCA – Há em curso uma oferta da MP & Silva para formar uma Liga dos Campeões das Américas e uma Liga Sul-Minas Rio que começa a aparecer. O que acha delas?
Leonardo – A Liga dos Campeões das Américas tinha que existir há muito tempo. Nunca vi dirigente brasileiro discutindo isso. Primeiro que temos um mundo, digamos, sedento por eventos, por futebol, que seria os Estados Unidos, lugar onde você pode encontrar dinheiro. É um mundo que ninguém nunca explorou, e não sei por quê. Teria que ter uma Liga dos Campeões que envolva os Estados Unidos. Na Europa, o dinheiro está na Inglaterra, na França, na Alemanha, não nos países menores. No caso das Américas, está nos Estados Unidos.

ÉPOCA – E a liga?
Leonardo – É um produto que nasce hoje por briga política, não por visão econômica. Nasce por uma briga de federações com os clubes. É uma solução paliativa. Pode ser o esboço de uma futura liga? Pode ser. Mas agora era o momento as lideranças sentarem e tentarem encontrar uma saída que seja boa para todo mundo. Todas as instituições estão fragilizadas. Todas elas. Qual está forte, moralizada, organizada, rentável? Não tem. Inclusive a CBF. Pode ter dinheiro, mas não tem todo o resto. Este é o momento. A liga tem que nascer nacional. A liga está financiada?

ÉPOCA – Até agora não tem TV, nem patrocínio.
Leonardo – Que liga é essa?

ÉPOCA – Por enquanto há só a briga entre Alexandre Kalil e CBF, “casa do 7 a 1”, como ele a chamou.
Leonardo – Exatamente. Ela não tem nem condições econômicas, porque não está financiada, nem políticas, porque não é unificada. Agora imagina que eu seja italiano, alemão, japonês, americano ou africano. A notícia nunca chega lá, mas vamos supor que ela chegou. “Liga Sul-Minas-Rio nasce no Brasil”. O que é isso? Como posso entender o que é isso? É uma demonstração a um futuro cliente de que você está construindo uma coisa que ninguém entende, não é vendável, não tem credibilidade. Com esse nome, já nasce morta. Não é questão de nome, mas dá a ideia de que não representa o futebol brasileiro.

ÉPOCA – Há resistência de paulistas. Roberto de Andrade [presidente do Corinthians] já falou que não quer, Paulo Nobre [do Palmeiras] não vai a reuniões. Dá para sair sem paulistas?
Leonardo – Não dá. Não tem que sair sem eles. Tem que sair com âmbito nacional. Se o Nobre não vai, não vai por uma questão política. Se amanhã disser que ele ganha dez, mas vai ganhar vinte, ele vem. Tem que ser muito prático. Tem que ter um projeto com novas receitas, bom para todos.

ÉPOCA – O confronto político dos clubes com a CBF não pode deixá-los em má situação?
Leonardo – Não precisaria de confronto, guerra. Não acho. Contra fatos não há argumentos. CBF não existe sem os clubes, os clubes existem sem CBF. Não acredito que seja bom para a CBF ter um campeonato ruim, no qual ela teoricamente tem um pouquinho de controle, mas não tem gerência total. Organiza tabela, escolhe juiz, define campo, estabelece horário, mas não é isso. A visão tem que ser comercial.

ÉPOCA – No Brasil o governo usou a dívida fiscal para forçar algumas regras por meio do Profut. Na Espanha, o governo foi mais radical e interviu para haver uma divisão mais igualitária das cotas de televisão. Como você vê a intervenção do governo na gestão do futebol?
Leonardo – O governo tem que controlar como controla qualquer outro setor. Se há falcatrua, quem regula tem que atuar. Não existe dizer se campeonato deve ser assim ou assado. O governo não deve entrar nisso, até porque é realmente privado. O clube não é público, as federações não são públicas, e um dia o governo deu o poder de organização a essas entidades.

ÉPOCA – O Profut, especificamente, com regras de limitação de mandato, responsabilização pessoal do dirigente por gestão temerária…
Leonardo – Tudo isso é em função de má gestão. O governo está muito distante, tem muito pouco conhecimento do que é isso. Acho difícil o ministro do Esporte saber exatamente o que acontece lá dentro. O governo poderia até estar sentado nessa mesa conversando. Nesse momento teria que ter uma conversa muito profunda. Mas não brigando ou impondo.

ÉPOCA – Alguns clubes brasileiros tentaram ter CEO. É pré-requisito para profissionalizar?
Leonardo – Temos que formar pessoas que tenham capacidade para aquele cargo. Não adianta pegar o mesmo diretor de futebol e remunerá-lo. Isso não é profissionalizar. Se não tem competência daquilo, não é profissionalizar. A gente está aqui batendo palmas para a Europa. O (time que está em) último lugar da Premier League (liga inglesa) fatura o triplo do primeiro do Brasil. A gente achava que era só colocar a camisa amarela, disputar a Copa do Mundo e, uau, marketing natural. Isso acabou. Acabou.

ÉPOCA – Isso tem que partir dos clubes, mas os próprios clubes são fechados. O São Paulo está no meio de uma crise em que o diretor socou o presidente, mas não muda. E aí?
Leonardo – Mas aí é que entra a grande instituição por trás. Ela que leva, direciona. Ela tem que direcionar a gestão de um clube. Se a gestão está desfavorecendo um clube, ela tem que intervir.

ÉPOCA –Quem é a grande instituição?
Leonardo – Hoje seria a CBF, mas sob o controle de alguém. A própria CBF teria que estar em um estatuto no qual ela é controlada por um conselho gestor ou de ética. pelos clubes. Se ela organiza o campeonato, ela tem que ser controlada pelos clubes. Se um clube não cumpre o seu papel, não arca coma s suas responsabilidades, não age com ética, ele é punido ou até proibido de ser inscrito no campeonato caso seja o caso. Um clube mal administrado atrapalha o campeonato. E não é só ida. É ida e volta. Se a CBF não realizar o que tem que realizar, tem que ser cobrada por isso. Existe hoje uma política que claramente deteriora o clube. Teria que ter intervenção. A CBF tem que chamar e perguntar: vem cá, qual é o problema? Aqui a gente não tem isso. A CBF não participa da discussão no real dos problemas dos clubes, ninguém entra, o São Paulo está lá do jeito dele, e muitos outros até piores, e falta a grande conversa do produto final.

ÉPOCA – A tragédia do 7 a 1, então, é muito anterior àquele jogo.
Leonardo – Muito anterior. Aquilo ali é a consequência drástica. Talvez nem precisasse do 7 a 1 para que a gente entendesse. A única coisa que restava aquele 7 a 1 destruiu: a nossa autoestima.

ÉPOCA – Isso [7 a 1] ainda pode ser gancho para mudar?
Leonardo – Acredito em trabalho. Não acredito em achar que nosso jogador nasce, joga bola, chuta bem. Isso vale para Pelé, Maradona, Messi, Cristiano Ronaldo. São pontos fora da curva e não servem como base. O que serve é aumentar o nível da média. Se a média for 80% ruim, o campeonato é fraco. Se a média for mais alta, o produto fica muito melhor.

ÉPOCA – Você foi convidado a ser CEO da Liga Sul-Minas-Rio?
Leonardo – Não considero um convite oficial. Houve uma consulta, até porque conheço essas pessoas, por meio do Eduardo Bandeira de Mello, presidente do Flamengo. Ele sabe o que eu penso.

ÉPOCA – Aceitaria um cargo no futebol brasileiro?
Leonardo – Eu olho o organograma do futebol brasileiro e não consigo almejar um cargo porque não acredito que me encaixo no perfil de liderança  nessas funções. Gostaria muito de participar, mas vejo a engrenagem muito engessada, a mentalidade muito fechada, viciada. Acredito em um grande movimento de pessoas que idealizassem um novo sistema. Um sistema independente de gestão que visasse o desenvolvimento esportivo, social e econômico do futebol brasileiro. Imagina um futebol moralizado, rentável e engajado em causas sociais. Seria um exemplo extraordinário. Teria um impacto fortíssimo, inclusive no desenvolvimento do nosso país, que tanto precisa. Isso eu aceitaria.

Por RODRIGO CAPELO

http://epoca.globo.com