Carros, ônibus, motocicletas, bicicletas e pedestres. Pessoas apressadas, sempre correndo e atrasadas para algum compromisso muito importante. Nada disso nos impressiona, pois o fluxo nas cidades começa antes mesmo do amanhecer.
Mas, e alguém que nunca viveu esse frenesi de atividades, o que pensa a respeito da vida urbana?
Conhecidos como “Povo do Xinane”, os índios de recente contato, habitantes da região de fronteira entre o Acre (Brasil) e o Peru, do tronco linguístico pano, aportaram em Feijó – interior do estado – na tarde do último sábado, 12, em pleno Festival do Açaí.
Shirimaku, Purus, Hainuno, Hunuishata e Kada. Este é o nome dos cinco desbravadores, que percorrem 555 quilômetros, por água, em um barco de alumínio a varejão (objeto de madeira utilizado para empurrar a canoa), para conhecer a “terra dos brancos”.
Ao tomar conhecimento da viagem, o chefe da Base do Xinane da Frente de Proteção Etnoambiental do Rio Envira, Marcus Boni, e o auxiliar de indigenismo Jeferson Lima se deslocaram em direção à tripulação, que se encontrava a três horas de viagem de Feijó.
A visita à pequena e pacata cidade acreana tem sido monitorada pela Fundação Nacional do Índio (Funai), por meio da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recente Contato (CGIIRC).
O primeiro passeio foi promovido logo após o desembarque do grupo. Devido ao grande fluxo de pessoas, Marcus e Jeferson acharam mais prudente acomodar os cinco “turistas” em uma residência de localização discreta, até o fim da festividade.
Na manhã desta segunda-feira, 14, os índios, acompanhados dos servidores da Funai, do intérprete e do sertanista José Carlos Meirelles, conheceram o Mercado Municipal, lojas e, finalmente, tiveram contato com a fonte de seu maior interesse: a loja de ferramentas e motores para barcos. Afinal é bem mais prático navegar em um barco a motor do que varejar 555 quilômetros.
Durante a caminhada pela área comercial, eles encontraram alguns índios Ashaninka, seus conhecidos e vizinhos das cabeceiras do Rio Envira. As impressões do novo sobre o velho mundo, o próprio Shirimaku, líder do grupo, é quem conta: “Aqui é muito bonito, mas de graça ninguém come. Onde eu moro, não tem dinheiro, ninguém precisa comprar nada, porque é o nosso território. Lá, a gente come de graça, o que a gente quiser tem na mata”, ressaltou Shirimaku sobre as relações comerciais e sociais observadas.
Quanto a vinda à cidade, ele é enfático: “Na descida para a cidade, muita gente falava ‘por que vocês não ficam com a gente?’. Nós não viemos atrás de vocês, vamos atrás de saber de onde o povo de vocês sai e como chegam até aqui. Queremos conhecer onde moram, como estão e como vivem. Queremos conhecer”, salientou.
Sobre a visita do Povo do Xinane, Meirelles observa que “o espírito de aventura é inerente ao ser humano. Assim não fosse ainda estaríamos confinados às savanas africanas”, afirmou o sertanista e assessor do governo do Acre.
Enquanto o mundo vibrava com as emoções da última Copa do Mundo, os índios isolados, conhecidos hoje como Povo do Xinane, resolveram fazer o contato.
A primeira aparição ocorreu em julho de 2014, na Aldeia Simpatia, do povo Ashaninka, onde se encontraram índios, servidores da Frente Envira e o sertanista José Carlos Meirelles.
As imagens percorrem o mundo. “Foram eles que, voluntariamente, decidiram fazer contato. Inicialmente, um grupo composto por sete índios. Nós os levamos para a Base do Xinane, onde havia uma estrutura mais adequada e, a partir disso, se iniciou esse processo de contato”, relembra Marcus Boni.
O primeiro e maior desafio foi mantê-los vivos, devido à falta de imunidade dos então isolados com as doenças da civilização branca. “A imunidade deles não era apropriada para o nosso mundo microbiológico, então a dificuldade foi grande. Como se aplica uma injeção pela primeira vez, em uma pessoa que nunca tinha visto uma seringa?”, contou Jeferson.
Vencida essa fase, três anos após o primeiro encontro, é possível afirmar que o contato deu certo. Atualmente, o Povo do Xinane é composto por 35 índios, entre homens, mulheres e crianças. Destes, dois nasceram – um menino e uma menina –no pós-contato.
A política do Estado Brasileiro em relação aos índios isolados é baseada em três sistemas: localização, proteção e contato, apenas quando a iniciativa parte dos próprios índios.
“Fizemos contato porque queríamos conhecer como era a vida de vocês. A nossa vida está muito boa, mas mata a gente não adoecia tanto”, destacou Shirimaku, índio que liderou a ida a Feijó.
A saúde desse povo é assegurada pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde. Na Base do Xinane há uma equipe de saúde permanente, composta por um enfermeiro e um técnico de enfermagem, bem como um auxiliar de indigenismo da Funai, uma cozinheira, dois colaboradores indígenas e dois mateiros.
Manter e fortalecer a cultura das populações recém-contatadas estão entre os grandes desafios. “Como você apresenta para um povo que há três anos era isolado o sistema de troca e uso capital, suas consequências e os demais contextos sociais?”, questiona o auxiliar de indigenismo da Funai, Jeferson Lima.
A experiência na cidade foi dividida em dois momentos: pontos positivos e negativos do cotidiano urbano. Os relatos da primeira expedição a Feijó vão despertar a curiosidade dos demais, por isso, a Funai já estuda a possibilidade de, atendendo a demandas dos próprios índios, realizar outras visitas monitoradas.
A necessidade de um linguista junto à equipe da Base do Xinane se torna cada vez maior, para que as informações sejam repassadas sem cargas de influencias. Atualmente, diálogo entre os índios e os profissionais é mediado por outro índio de mesmo troco linguístico.
“A gente tenta proteger ao máximo a cultura deles, como por exemplo não interferindo em seu estilo de vida e alimentação, sempre numa tentativa de fortalecimento a cultura tradicional desse povo”, frisou Marcus Boni.
Os cortes orçamentários na Fundação Nacional do Índio, feitos pelo governo federal, têm comprometido o êxito das políticas públicas. O último concurso para auxiliar de indigenismo no Acre foi realizado em 2010, não havendo atualmente previsão de um próximo.
Dos 17 auxiliares de indigenismo que prestaram concurso para o Acre, 13 continuam exercendo suas atividades no estado. Destes, apenas seis compõem a equipe de campo, responsável pela vigilância do território, assistência aos índios e monitoramento de mais três povos isolados existentes numa região de quase dois milhões de hectares.
“O que tem havido é um demonstre da política indigenista no Brasil, conquistada a duras penas. Estamos vendo os direitos dos índios sendo reduzidos pelo Congresso Nacional, em que a grande maioria dos interessados defende o agronegócio”, salientou Meirelles.
Com uma política de desenvolvimento sustentável em curso há quase 20 anos, o governo do Acre é parceiro das populações tradicionais, extrativistas e indígenas.
Pioneiro na promoção do programa global REDD Early Movers (REM) – política de baixa emissão de carbono, que assegura a manutenção da floresta e uso racional dos recursos –, o Estado já investiu R$ 57 milhões nas 34 terras indígenas que compõem o território acreano, entre 2011 a 2017.
Outros R$ 20 milhões serão aportados até o fim da gestão de Tião Viana, em 2018. Apesar da responsabilidade da política de proteção aos povos indígenas isolados e de recente contato ser estritamente do governo federal, o governo do Acre deu início a uma parceria com a Funai, no intuito de fortalecer os trabalhos da Frente de Proteção Etnoambiental do Envira.
“Estamos consolidando essa parceria, pois o Estado tem muito interesse em potencializar essa política de proteção aos índios isolados e de recente contato. De modo que estudamos investir entre R$ 50 mil a R$ 200 mil na estruturação da Frente Envira”, salientou o gestor da Assessoria de Assuntos Indígenas do Estado, Zezinho Yube.
Texto de Maria Meirelles || Fotos de Gleilson Miranda || Diagramação de Adaildo Neto
Fonte agencia.ac.gov.br