Por Tácita Muniz
“Isso aqui pra mim é tudo. Aprendi com meu pai e quero passar para frente, se Deus quiser”. A frase é dita com firmeza pelo coletor de açaí José de Araújo, que, assim como o pai, aprendeu a ter renda do cultivo do fruto que dá a eles o “ouro vinho”, como é chamada a polpa do açaí. Na Colônia Santo Antônio, zona rural de Feijó, a família se dedica há dez anos ao plantio da palmeira típica da Amazônia, que dá o fruto que movimenta a economia da cidade no interior do Acre.
Desde setembro do ano passado, quando o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) concedeu aos produtores de açaí do município de Feijó o primeiro registro de Indicação Geográfica (IG), quem trabalha com o cultivo, coleta e venda do produto, iniciou uma corrida para se adequar a todos os requisitos técnicos para resguardar a qualidade do produto, que também dá nome a um dos festivais mais tradicionais do estado, o Festival do Açaí.
O selo reconhece as características do produto pelo seu local de origem, o que lhes atribui reputação e identidade própria. Produtos com esse reconhecimento apresentam uma qualidade única em função de recursos naturais como solo, vegetação, clima e a forma como é cultivado.
A terra de José de Araújo e de seu pai, Antônio do Nascimento, tem 32 hectares. Dois deles são destinados à plantação do açaí de cultivo, ou seja, que foi plantado. Uma técnica que ultrapassa gerações, sendo passada de pai para filho.
“Quando eu tinha sete anos, subia nos pés de açaí e olhava os cachos para meu pai. Indicava se dava pra tirar ou não e aí quando eu avisava, ele ia lá e colhia. Hoje, a gente planta e já processa o vinho aqui mesmo, em uma pequena indústria”, explica.
A safra do açaí tem uma peculiaridade. O ápice dela ocorre no período de chuvas no estado, o chamado inverno amazônico, o que acaba dificultando o escoamento da produção, o maior desafio apontado por esses produtores. Porém, segundo José, é que até 90% do que colhem na propriedade consegue ser vendido por eles.
“Este ano estamos tendo uma das melhores safras e, desses pés que a gente planta, vamos conseguir colher ainda até agosto”, afirma.
Da continuidade dessa atividade na família ele não abre mão, diz que quer repassar para os filhos, assim como teve a oportunidade com o pai: “A gente vive isso e quer dar continuidade. Além da renda, é importante pelo reflorestamento, porque nós sempre estamos plantando árvores.”
Antônio do Nascimento completa relatando que a divulgação da IG já agregou valor ao produto. “Antes a gente vendia o litro por R$ 6 a R$ 8, e agora ficou uma base de R$ 10. Ele já sai daqui na polpa, pronto para colocar farinha e açúcar e tomar”, explica.
Cadeia produtiva
A engrenagem dessa cadeia produtiva é movida por muitas mãos, entre produtores, coletores e batedores. É um sistema que precisa funcionar em sintonia, ainda mais agora, com o selo nacional que certifica o açaí da cidade acreana como um dos melhores do país.
O trabalho ainda é tradicional e artesanal. Alguns desses setores conseguiram mecanizar alguns processos, como a produção do vinho, mas ainda é uma atividade que requer técnica e conhecimento tradicional.
José Nilton de Oliveira conseguiu ver essas mudanças de perto. Trabalhando com a produção do açaí há mais de três décadas, ele conta que, quando começou, o açaí era batido com pilão e o vinho era vendido em bacias nas ruas da cidade.
“Eu morava no seringal e, quando vim pra cidade, fui trabalhar com diária, mas o negócio era ruim. Um dia fui pra mata e vi muito açaí e, como no seringal a gente fazia para beber, chamei meu cunhado e começamos a tirar os cachos e a bater com pilão. A gente tirava, batia e aí saía com uma bacia para vender. E hoje estamos aqui, ganhando o nosso pão”, relembra.
Atualmente, ele trabalha ao lado do seu sobrinho, Mateus Alves, que seguiu a profissão do pai ao lado de José Nilton. Hoje ele tem uma das mais conhecidas empresas da cidade, República do Açaí. Um negócio de família.
Costurando a linha do tempo nas palavras, José Nilton reconhece que tudo que tem hoje foi dado pelo açaí. “Aí foi reunindo a família. O açaí fez eu construir três casas, não é casa de rico, é casa de pobre. Mas são minhas casas e comprei também minhas coisinhas, meus móveis. Tenho que agradecer, primeiro a Deus e depois ao açaí”, completa.
Mateus, proprietário da empresa, diz que aprendeu sobre açaí com o pai e o tio, que segue com ele na jornada. O pai morreu em um acidente de carro, mas deixou o legado para que o filho pudesse dar continuidade.
“Em toda minha vida estive presente nesse ramo e, depois do acidente do meu pai, comecei a tocar essa cultura que vem de família”, diz ao revelar que, em média, por mês, chega a vender de 10 a 20 toneladas do vinho do açaí.
Os principais destinos do produto são Sena Madureira, Rio Branco, Brasília, Goiás e Minas Gerais. Para identificar e certificar que o produto foi feito na sua agroindústria, Mateus criou uma embalagem que confirma que o açaí é de Feijó.
“Usamos essa embalagem há três anos e foi ideia minha, para divulgar nosso nome. Com a Indicação Geográfica já dá pra sentir uma certa diferença, mas pouca ainda; falta organizar mais essa estrutura da cadeia produtiva”, pontua.
Já Manoel da Silva Nascimento e Carlos Manoel Nascimento, seu filho, só trabalham com encomendas. A colônia Areal, onde residem, tem cerca de 85 hectares, sendo 43 de açaí nativo e também plantado. “Os meus filhos desde pequenos iam comigo e observavam a gente tirar o açaí; e hoje os dois me ajudam com isso”, narra.
Carlos Manoel conta que, dependendo da demanda, pode chegar a 15 subidas por dia para a retirada do fruto. “Comecei a colher junto com meu pai e, se um dia eu tiver um filho, quero que ele aprenda comigo também”, destaca.
Da mesa ao negócio
Antes mesmo do selo nacional, o açaí já movimentava a economia da cidade, conforme comprovou o dossiê histórico feito pela Fundação Elias Mansour (FEM), que mostrou que o açaí não estava somente na mesa dos feijoenses, mas também na identidade visual da cidade e ainda mais no modo de viver da comunidade.
Josileide da Silva foi uma dessas visionárias. Ao perceber que o mercado do açaí estava se ampliando, criou um negócio junto com o marido, Adelcimar da Silva, que antes era coletor de açaí.
Para ela, antes de virar renda, o açaí é uma memória afetiva de quando sua mãe preparava a polpa para os filhos tomarem quando crianças. “O açaí faz parte da infância de muitas pessoas em Feijó, porque tem muito na região. Por essas épocas de safra, as pessoas não passam fome, tiram e usam como alimento. Tenho muitas memórias da minha mãe fazendo açaí pra gente”, detalha.
Assim que conheceu o marido, ao saber que ele coletava o açaí, teve a ideia de tentar apostar no ramo. “Resolvemos criar nosso próprio negócio e hoje as pessoas dizem que o nosso açaí é o melhor da cidade, porque sempre prezamos em manter a qualidade.”
Além de criar o próprio negócio, a pequena agroindústria de Josileide emprega cerca de 12 pessoas, entre coletores e batedores. Quando a demanda aumenta, o efetivo também precisa ser maior.
De coletor a dono do próprio negócio, Adelcimar da Silva disse que aprendeu a prática com amigos ainda jovem. O açaí para ele, além de ser sua renda, foi um divisor de águas da sua história: “Ele mudou minha vida, porque foi um dos produtos que me deu renda, é meu ganha-pão.”
Com a IG, ele pretende adequar o negócio e se estruturar melhor, para ampliar as vendas e usar o selo de qualidade do produto. Enquanto dá entrevista, as vendas no comércio do bairro não param.
Semanalmente, Dani Bastos compra dez litros de açaí. Ela conta que o filho é apaixonado pelo vinho. “Meu filho tem 7 anos, é autista e só gosta do açaí daqui. É único, com qualidade, e já compro há alguns anos”, revela.
Já Angra Linhares consome 20 litros por semana. “Divido em duas casas, então levo dez para cada. Todo dia, depois do almoço, tem que ter o açaí”, afirma.
Idaf acompanha áreas
Por ser um produto de origem vegetal, o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (Idaf) é um elo importante no fortalecimento dessa corrente, estando presente nas áreas de plantio e orientando os produtores sobre a qualidade da área e alertando sobre pragas.
Engenheiro agrônomo do Idaf de Feijó, Igor Figueiredo explica que a maior área de plantação de açaí nativo é na região do Jurupari. E que há também grandes áreas de açaí de plantio comercial.
“Temos a questão do clima, que favorece muito o plantio. Quando tem a falta aqui do açaí na região de Feijó, o pessoal faz os abastecimentos com o vindo do Envira. Na região, a gente trabalha na questão de monitoramento de pragas, ajudando os produtores. Temos também uma grande quantidade de ataques da broca-do-coqueiro que tem esse nome porque ela ataca também os coqueiros aqui na região, causando perdas significativas. Essa mesma praga ataca o açaí, então, a gente faz os monitoramentos”, explica.
No começo de 2022, coube ao Idaf também fazer o levantamento das agroindústrias de açaí que atuavam na região e a equipe chegou ao total de 30 negócios nesse modelo de produção.
O médico veterinário Vinícius Braga, chefe da unidade do Idaf do município, destaca que as plantações em Feijó não são extensas, mas sim de subsistência, e que o instituto tem fortalecido as ações para manter a qualidade das produções.
“Graças à convocação de um engenheiro agrônomo, temos agora essa pessoa capacitada para levar ao produtor as informações necessárias e esse trabalho se intensificou. Então, faz dois anos que a gente está levando essa parte de defesa vegetal junto com a defesa animal e incorporando sempre os trabalhos, para que todos sejam atendidos da melhor forma”, diz.
Organizar para impulsionar
A cidade já tem grandes produtores que reconhecem e apostam na bioeconomia. É o caso de José Célio dos Santos, proprietário de uma área em que planta açaí consorciado ao café. Ao todo, são mais de 20 mil palmeiras. Com seu negócio, ele emprega mais de 40 pessoas.
O açaí ele vende em Feijó, mas diz que pretende ainda ver sua produção com um bom escoamento. “O que nos ajudaria mais ainda seria um meio de transporte para escoar o açaí destas terras e também o açaí ser incluído na merenda escolar”, pontua.
Para uma estruturação como a sonhada por José Célio, foi iniciado um processo do governo do Acre, em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). O primeiro passo foi conseguir o selo; agora é fazer com que essa cadeia se organize, sob os parâmetros técnicos, e possa fortalecer a bioeconomia.
Uma das pioneiras nesse processo é Julia Graciela de Souza, dona da empresa Nosso Açaí e única a obter o Serviço de Inspeção Federal (SIF), selo dado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), que avalia a qualidade na produção de alimentos de origem animal comestíveis ou não comestíveis. Com essa credencial, ela pode exportar seu produto para qualquer lugar.
Júlia conta que morou algum tempo em outro estado e, ao voltar para o Acre, comprou uma terra onde havia alguns pés de açaí nativo. Após comprar a área e ver como a economia do açaí podia gerar renda na cidade, passou a lutar para que houvesse mais incentivo nessa produção.
“Com a minha agroindústria, consegui em 2019 o SIF, depois de seis anos. E aí, depois desse meu movimento, outras instituições abraçaram a causa, como Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], Sebrae e Idaf, e montamos um dossiê para levar até o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, que deu toda essa notoriedade ao nosso modo de fazer o açaí”, conta.
Após conseguir o SIF, Júlia enfrentou a pandemia e também problemas estruturais de erosão onde funcionava sua agroindústria, mas agora, por meio da Secretaria de Estado de Indústria, Ciência e Tecnologia (Seitc), conseguiu um espaço no Polo Moveleiro de Feijó, onde vai ser montada a nova agroindústria, que será modelo para todas as outras que devem se enquadrar.
“Toda a economia de Feijó gira em torno do açaí. Muita gente vive do cultivo e produção do açaí e o Estado ganha com isso porque, automaticamente, muitas pessoas revendem. Nosso objetivo é fazer com que vejam que é possível e venham também entrar no ramo do açaí para, cada dia mais, ir criando espaço para um mercado bem-sucedido”, destaca.
Parceria entre Sebrae e governo
Um dos braços para que esse processo evolua e abrace o máximo de pessoas possíveis é o Sebrae. Laís Mapes, analista e gestora do projeto Agronegócio Juruá, Tarauacá e Envira, explica que, no processo de Indicação Geográfica, há um caderno técnico que lista todos os procedimentos que a empresa deve seguir para usar o selo.
Atualmente, a cooperativa AçaíCoop Feijó detém o selo. “O primeiro processo foi há três anos, com a criação da cooperativa e a necessidade de um levantamento do histórico para provar que tinha como implantar a certificação de procedência do açaí, pela história de mais de cem anos, além de ser a principal atividade econômica na cidade”, relembra.
Este ano, o Sebrae pretende formar um comitê, reunindo diversas instituições, e deve levar a capacitação para que essas agroindústrias se enquadrem e possam usar o selo da IG.
“Uma consultora vai fazer diagnóstico de como está a situação de cada agroindústria e não vamos trabalhar apenas com batedores, mas também com os coletores, porque a cadeia toda tem que estar de acordo pela qualidade do produto. Então vamos fazer esse diagnóstico, saber como está a situação de cada um, dentro do processo na cooperativa, e vamos começar a fazer a adequação”, explica.
Todas as empresas devem se adequar de acordo com o Programa Alimento Seguro. “Outra coisa que é muito importante é uma consulta pública com os moradores de Feijó. A população tem que saber que o açaí de Feijó tem esse selo. Depois de conseguirmos a IG, essa é a parte mais difícil, de organizar toda essa cadeia”, avalia.
Fomentar indústrias
O titular da Secretaria de Estado de Indústria, Ciência e Tecnologia do Acre (Seict), Assurbanípal Mesquita, diz que o governo do Acre tem trabalhado na criação de novos negócios como pilar da economia do estado.
“A indústria é um setor que fixa mais recursos, gera mais retorno para a economia local e estadual. Nós disponibilizamos um espaço em parceria com a empresária Júlia [de Souza], para poder montar a sua indústria, e assim está acontecendo. O açaí é um importante produto de referência do nosso estado e, agora, com essa indicação geográfica, no caso do açaí de Feijó, vai gerar uma agregação de valor muito forte. Então, o nosso papel de governo é realmente apoiar, estimular e fazer de tudo para poder fomentar a geração de novas indústrias, especialmente no caso do açaí, que é um produto mundialmente conhecido”, reforça.
A meta para este ano, segundo o secretário, é estimular empreendimentos de bioeconomia no estado. “Queremos fomentar 50 negócios desse tipo, desses segmentos, agroindústria e indústria da bioeconomia. Estamos realizando modelos de pequena, micro e média indústria, para poder apresentar para o setor empresarial, buscar, investir, fazer planos de negócios para ampliar o número de indústrias do açaí, especialmente da região de Feijó, que é uma região que tanto precisa de fomento, de geração de negócios e oportunidade de trabalho e renda para as pessoas das famílias daquela região do Envira.”
José Jevanis Nascimento, presidente da Açaí Coop, enfatiza que o desafio está sendo estruturar a cadeia produtiva para que os resultados consigam chegar na ponta de quem vive da produção do açaí.
“O desafio nosso agora é essa junção para estruturar, organizar e padronizar essa cadeia, que depende de muita coisa, desde o visual, a comunicação, até chegar ao consumidor. Com essa estruturação, o que a gente almeja é a valorização do produto, para que ele possa chegar até os mercados internacionais”, almeja.
Outra luta da cooperativa, segundo ele, é que todo esse produto tenha um rastreio – uma identificação que mostre onde o açaí foi colhido e batido.
“A Indicação Geográfica tem um conselho regulador e um dos parâmetros é a gente ter o controle desse produto. A gente precisa saber a origem dele, de onde ele está vindo, qual é seu o produtor, pra gente ter principalmente o controle sanitário, mas pra isso tem que ter o rastreamento. Estamos estruturando agora, com a parceira do Sebrae, para efetivar o conselho regulador e atender produtores rurais, que são os protagonistas dessa cadeia”, explica.
Bioeconomia
Atualmente, o fruto do açaí é o produto extrativo mais importante para a bioeconomia da Amazônia. Em 2021, ele gerou mais de R$ 2 bilhões pela sua comercialização, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em 2023.
A produção do extrativismo de açaí na Amazônia se sustenta em uma base econômica, ecológica e social, pois ajuda a manter a floresta em pé, gera postos de emprego e ainda contribui para a redução do desmatamento, uma vez que contribui para reduzir efeitos da mudança climática.
Em 2022, o IBGE registrou que o estado teve uma extração de 4.428 toneladas do fruto, sendo a maior parte de origem do Vale do Juruá, onde está inserido Feijó.
“Como alimento principal da dieta do povo amazônico, além da importância social, em termos econômicos, o fruto do açaí é um dos principais produtos florestais não madeireiros na geração de renda e postos de trabalho e emprego da Amazônia. As perspectivas são de que, até 2050, seja aumentado ainda mais o volume extraído das florestas”, aponta o boletim de conjuntura econômica, divulgado pelo Fórum Empresarial de Inovação e Desenvolvimento do Acre em outubro do ano passado.